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Artigo: Em defesa da igualdade racial

por publicado: 21/11/2013 12h19 última modificação: 21/02/2014 10h50
Servidora do MJ, Márcia Maria da Silva faz um breve resgate histórico da resistência negra no Brasil, fala sobre a cultura do branqueamento e defende as cotas no serviço público

A CULTURA DO BRANQUEAMENTO

Brasília, 21/11/2013 – O Estado brasileiro, desde o final do império até muito recentemente, teve um pacto de silêncio e negação do racismo. A Nova República, proclamada e controlada por ex-senhores inconformados com a abolição da escravidão, desprezou os negros, que foram apontados como responsáveis pela indolência e pelo atraso do país.

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A elite brasileira passou toda a primeira república assombrada pelas teorias racistas pseudocientíficas do século XIX, que preconizavam uma rígida hierarquia das “raças” em que os brancos tinham a responsabilidade de dominar e de civilizar as “raças” tidas como inferiores.

Assim, temendo um possível contingente majoritário de não brancos, financiou e desenvolveu com recursos públicos vários projetos de atração de imigrantes europeus, não só em busca de mão de obra que considerava mais desejável, mas também em perseguição de um fantástico ideal de “embranquecimento nacional”.

A Revolução de 30, destinada a substituir no poder as velhas oligarquias, da “velha república”, não trouxe nenhuma mudança na visão das elites ou na postura do Estado sobre a questão racial.

Foi nesse período que apareceu uma reação intelectual com o sociólogo pernambucano Gilberto Freyre contra o racismo “cientifico” que, no entanto, reforçou a necessidade da mestiçagem, como forma de branquear a população. Sua obra é inteiramente impregnada por uma visão idílica da escravidão benevolente ou cordial, e constitui, até hoje, o grande pilar intelectual do mito da democracia racial no Brasil.

O mito da democracia racial sufocou a construção de uma identidade racial e a consciência de grupo entre os negros brasileiros, e conseqüentemente uma mobilização por parte dos dominados, apesar das evidentes desigualdades sócio-econômicas e de oportunidades.

A democracia racial brasileira, diferentemente da discriminação e da dominação com restrições legais de “raça” estabelecidos nos Estados Unidos e na África do Sul, não incentivou a solidariedade entre os negros, nem gerou uma mobilização significativa em torno das questões especificamente raciais.

Esses problemas penetraram profundamente no psiquismo do negro e do branco: no negro sob a forma de branqueamento estético, biológico e social; com um modelo de beleza, comportamento, moral, mentalidade, etiqueta assimilados a partir de um modelo branco europeu; e no branco o medo do Outro e o desejo de eliminação simbólica e/ou física desse Outro e/ou Outros.

Nesse aspecto, a teoria de Freud expõe que nossas identidades, nossa sexualidade e a estrutura de nossos desejos são formadas com base em processos psíquicos e simbólicos do inconsciente. Nesse sentido, a imagem do eu como inteiro e unificado é algo que o indivíduo aprende gradualmente na sua relação com os outros. Para Lacan, a formação do “eu” no olhar do Outro inicia a relação da criança com os sistemas de representação simbólica, incluindo a língua, a cultura e a diferença sexual.

Segundo essas interpretações, a identidade é formada ao longo do tempo por meio de processos inconscientes. Ela permanece sempre incompleta está sempre em processo, sempre sendo formada, portanto toda identidade é provisória e desprovida de essência. A identidade surge de uma falta de inteireza que é preenchida a partir do nosso exterior, pelas formas como nós imaginamos sermos vistos por outros.

Nesse sentido, a sociedade brasileira associa à bondade, o sucesso, a criatividade, o gênio, a beleza e a civilização com a brancura, e em última análise identificam a condição humana com o fato de ser branco. Esse processo de embranquecimento foi e continua sendo uma tentativa de redefinir para os negros, o que significa ser uma pessoa humana. Nesse sentido ser negro é ser menos humano e por meio do processo de embranquecer, os negros poderão ser mais humanos.

No Brasil, em 2010, 97 milhões de pessoas se declararam negras ou pardas, e 91 milhões brancas, no entanto, apesar de serem maioria os negros, continuam ausentes dos espaços de visibilidade e poder.

Essa cultura de branqueamento constitui-se um ataque psicológico aos negros. Segundo Larkin Nascimento, esse processo de embranquecimento que vem ocorrendo há mais ou menos 124 anos tem causado mais danos psíquicos aos negros do que os quatrocentos anos de escravidão.

O racismo produz diferentes formas de adoecimento e provoca distorções na construção da identidade de negros e brancos. Compreender como ele atua no psiquismo das raças envolvidas e encontrar formas de superação é uma tarefa e um dos estágios na reconstrução de uma sociedade mais justa e igualitária.

Márcia Maria da Silva é psicóloga, negra, servidora pública do MJ e colaboradora do site O MIRACULOSO

* As opiniões expressas neste artigo não refletem necessariamente a visão do Ministério da Justiça  ou de seus membros